TOQUE DE LICENÇA

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TOQUE DE LICENÇA



Jomar Dital



Só quem foi marujo antes da revolução redentora de 1964 e até a alguns anos depois, antes que a briosa se modernizasse em seus costumes tradicionais de casquinhas em que cães gorgotas e ofs bitolados sentiam prazer orgástico em sacanear a marujada sabe a ansiedade que se avizinhava quando a perspectiva de licença apontava no horizonte no final de uma pernada braba de céu e mar cheia de exercícios, mar picado e pegas reais, safados pela astúcia, perspicácia e capacidade de improvisação dos velha-guardas tarimbados nas lides de Netuno.

Ao toque de banho e uniforme para licenciados a euforia se manifestava em gritos e outras formas de manifestações de alegria transbordante, em especial se a viagem transcorrera com a aguada fechada e agora, na chegada ao porto, diante da perspectiva de abastecimento de água, o fonoclama anunciava, para regozijo da guarnição: aguada liberada!

Havia boys que sequer tomaram banho durante a comissão, outros, boys e velha-guardas há dias no banho de faxineira, e somente uns poucos com poucos banhos corridos tomados. Moral da estória: todos necessitavam de uma boa faxina em seus corpos unguentados de suor e vapores diversos mas a gana para baixar à terra era tanta que muitos da boyzada mal se lavavam e já caiam dentro da burrinha amafranhada, mais amafranhada ainda para quem morava em sacos.

Ao toque de licença já todos estavam a pé de galo na formatura conforme mandava o figurino: perfilados em posição de sentido com a identidade na mão apresentando-a à altura do peito e uma gateira com o paisano aberta ao lado do pé esquerdo, prontos para serem inspecionados pelo oficial de serviço ou por um preposto seu. Agora eram momentos de tensão! Aquela incerteza se seria liberado ou não para partir feroz para o tão desejado soco, para a roda de campanhas em volta da mesa de um bar a jogar conversas fora ou diretamente para os braços delas em um BG qualquer.

E na maioria das vezes ficava-se na dependência do bom ou do mau humor do oficial de serviço que, já azucrinado por estar de pau na chegada do porto descarregava sua insatisfação em cima da boyzada. Alguns começavam a inspeção de cima para baixo, outros de baixo para cima: cabelo fora do artigo, barba mal feita, uniforme em desalinho, fivela mal polida, sapatos sujos ou mal engraxados, etc. Qualquer picuínha era motivo para recolher a identidade do boy e retirá-lo da formatura de licenciados. Os não barrados saíam à toda cruzando a prancha em passadas largas e aceleradas antes que o casquinha mudasse de ideia e opinião, e mal pisavam no cais viravam um gás. Os barrados tinham que corrigir as discrepâncias apontadas e aguardar o novo toque de licenciados conforme sacramentado na rotina, e muitas vezes eram barrados novamente.

Quem era barrado por causa do cabelo ficava na onça! Como se safar se não tinha barbeiro a bordo? A saída era descolar uma tesoura com algum campanha prevenido e arranjar alguém que topasse dar uma guaribada no seu pelo, o que findava resultando em verdadeiras tosquias mal feitas mas que safava a licença e depois, no chão, procurar-se-ía uma barbearia para reparar os danos.

Tinha uns boys metidos a safo que tentavam enganar o oficial de serviço dando uma de João Sem Braço. Fora barrado pela fivela do cinto mas na formatura seguinte apresentava os sapatos e dizia: pronto, chefe, já safei o pisante! Quando a quantidade de barrados era muita às vezes colava e o boy ingurupia o oficial porém, se não colasse, poderia resultar em livro de castigos por usar de má-fé e tentar ludibriar a autoridade em serviço. Quando colava o boy recebia de volta sua identidade e partia feroz na esteira dos chaparias que tinha saído na primeira.

Em terra era outro drama! Não se podia sair de bordo à paisana, por isso todo marujo tinha uma gateira grande onde levava o paisano completo e guardava a burrinha depois de trocá-la em terra. O pega era onde guardar a gateira até voltar do soco.

Em alguns navios o comandante até consentia que o auxiliar recebesse as gateiras pela borda e as guardassem em um local determinado do convés, mas eram poucos os que consentiam. Às vezes, quando o auxiliar era uma chaparia, até quebrava o galho fazendo isso mas corria o risco de ser punido, então, o jeito que tinha era esconder a gateira em qualquer local que aparecesse: num bar, no cafofo da grinfa no BG, ou carregar a gateira o tempo todo a contrabordo.

No porto de Santos sempre ficava uma pá de vagões de trens parecendo de agarra, largados, abandonados, mas estavam esperando na fila pra descarregar e permaneciam ali dias e dias. Alguns marujos se safavam escondendo suas gateiras nesses vagões e se davam bem mas teve muito boy que ao volar do soco ficou literalmente na onça porque nem sinal dos vagões e adeus gateira com uniforme e tudo! Não podiam regressar pra bordo à maloca e aí dependia de algum campanha que safasse pelo menos um mescla para que pudesse embarcar.

Onça mesmo era quando isso acontecia e se chegava ao cais nas bocas do D.E.M. Não dava tempo de se safar e aí embiocava pra bordo do jeito que tava. Dependendo do cagaço do oficial de serviço poderia ficar só num esporro ou ir para o livro e depois ir parar nos pés da imagem para se explicar com o zero um, podendo pegar bailéu ou não, uma bóia, apenas uma repreensão ou até mesmo ser dispensado.

Marujo de hoje, da geração nutella, de depois da Marinha das Mulheres, nunca passou nem passará por esses sufocos mas também nunca terão estórias como essas para contar, nunca saberão o que representava para a marujada daquele tempo, no regresso de uma pernada cheia de exercícios e sufocos com mar picado e voga mais picada ainda numa inspeção de CIASA, um Toque de Licença.


Licenciados semtido!

À ré, volver!

Continência à bandeira,  um . . .   dois

Ao centro, volver!

Em direção à terra, debandar!



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